sexta-feira, 14 de março de 2014

Valladolid ‘forever’, por Luis Fernando Veríssimo, na velha mídia de hoje

Ao que me lembre, não consigo recordar de uma única época em que alguém não estivesse pilhando alguém, acima ou abaixo da linha do Equador...  Se os espanhóis pilharam os astecas, estes haviam pilhado os toltecas.  Por trezentos anos os mongóis pilharam e arrasaram cidades da Rússia à Europa orienta para fazer pastos para seus cavalos (literalmente).  Os piratas da costa norte –africana passaram outros trezentos anos pilhando a Europa meridional, da Grécia à Espanha.
Veríssimo está correto quanto aos fatos, mas o primeiro degrau a subir para fora do poço é ultrapassar o complexo de inferioridade, latente em toda América Latina.  Duzentos anos de revoluções sobre revoluções não nos levaram a lugar nenhum.  Estudar a revolução mexicana de 1911 é mergulhar em uma crônica de desperdício inútil.
Não há saída fora do trabalho sob leis estáveis.  Evolução precisa de tempo, mas, acima de tudo, necessita de educação abrangente, prática e não ideológica.
 
 


Valladolid é uma cidade de 300 mil habitantes no Noroeste da Espanha. Foi lá que se casaram e reinaram os monarcas católicos Isabel e Fernando, foi lá que viveu Miguel de Cervantes e morreu Cristóvão Colombo.
E foi lá que em 1550 e 1551, diante de uma junta de doutores e teólogos convocada pelo rei Carlos V, o historiador eclesiástico Juan Ginés de Sepúlveda e o frei Bartolomé de Las Casas se reuniram para debater a colonização espanhola do Novo Mundo e o que fazer com seus nativos, além de catequizá-los.
Las Casas voltara do Novo Mundo e tinha uma visão humanitária das suas populações subjugadas. Pregava a sua cristianização benévola. Sepúlveda era um escolástico sem experiência fora do mundo acadêmico e um seguidor da teoria aristotélica segundo a qual seres inferiores são naturalmente escravizáveis.
Assim, para Sepúlveda, os nativos poderiam ser ao mesmo tempo cristãos, para o caso de terem almas a serem salvas, e escravos, para ajudar na pilhagem da sua própria terra.
No famoso debate de Valladolid o Império espanhol pretendia fazer um exame de consciência depois dos excessos da conquista, uma espécie de faxina depois da chacina. O que Las Casas e Sepúlveda estavam realmente discutindo era se índio é gente ou não é gente e, portanto, qual era o tamanho da culpa dos conquistadores.
O fato de os nativos terem almas que respondiam à catequese não provava nada; na época também se discutia, com o mesmo ardor intelectual, se bicho tinha ou não tinha alma. Convencionou-se que Las Casas ganhou o debate, pois tinha os melhores sentimentos cristãos ao seu lado, mas Sepúlveda ficou com a razão.
A pilhagem do Novo Mundo continuou, com a cumplicidade involuntária dos nativos — e continua até hoje. O debate de Valladolid se eternizou. Afinal, os miseráveis do hemisfério são gente ou não são gente?
Os bons sentimentos cristãos de Las Casas impediram que a divisão entre saqueadores e saqueados no continente se aprofundasse ou só serviram para encobrir o abismo com o manto da caridade inútil, que só satisfaz o caridoso?
Por que será que todas as tentativas de romper esta maldição no hemisfério acabam em golpe ou farsa, com os eventuais insurgentes fazendo o mesmo papel de bichos exóticos que os nativos faziam diante dos colonizadores do século 16?
Conforme o adágio, não existe pecado abaixo da linha do Equador. Henry Kissinger, sem saber, fez uma adaptação geopolítica da frase quando disse que ninguém faz história no sul do mundo. O que é outra maneira de duvidar que aqui haja gente, ou pelo menos gente consequente. Talvez por modéstia, não se lembrou de dizer que quando aparece um decidido a não ser mais escravo, como Allende no Chile, é rapidamente abatido.

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