quinta-feira, 3 de julho de 2014

Desmascarando o mito conservador

Luiz Fernando Reis

Este é o primeiro de quatro artigos sobre a economia e a doutrina social da Igreja, que publicarei em Aleteia.

Will Durant escreveu a famosa série “Story of Civilization” [História da Civilização] em 11 volumes que somam fabulosas 9.766 páginas. No primeiro volume, com humor característico, ele admite que "a maior parte da história é adivinhação e o resto é preconceito". Mark Twain concordou, dizendo que "a própria tinta com que toda a história é escrita é puro preconceito líquido". E Voltaire dizia que os historiadores eram apenas "fofoqueiros que provocam os mortos".

A história é escrita em grande parte com o objetivo de "arranjar sentido" para o que veio antes de nós. Segue-se disto, naturalmente, que ela vai conter os preconceitos da cultura que a escreveu. A história é escrita pelos “vencedores”, e, normalmente, acaba sendo lisonjeira para com seus “autores”.

É por isso que a história da Reforma, até recentemente, exagerava grosseiramente ao narrar a perseguição católica contra os reformadores, omitindo, ao mesmo tempo, grande parte da perseguição dos reformadores contra os católicos, para não mencionar as perseguições entre as facções opostas dos próprios protestantes. Calvino, por exemplo, não hesitou em queimar um colega reformador que não era “suficientemente calvinista”.

Para ficarmos mais perto de casa, imagine como seria a nossa narrativa da história americana a partir da perspectiva dos índios.

Mas a questão aqui não é se um grupo em particular é mais sinistro ou menos sinistro do que outro; também não estou dizendo que a injustiça é desculpável porque todo mundo a comete. A questão aqui não é moral, mas cultural: estamos falando de como nós nos explicamos para nós mesmos. No rescaldo de uma guerra, inevitavelmente ficamos com a narrativa que nos apresenta os vitoriosos como heróis e os derrotados como vilões.

Mel Gibson, no início do filme “Coração Valente”, diz que "a história é escrita por aqueles que enforcaram os heróis". No caso da nossa noção contemporânea de história, ela foi escrita, pelo menos em parte, por aqueles que enforcaram padres, índios, etc. Estes exemplos vêm da nossa história religiosa e nacional, mas a nossa história econômica não é diferente: a verdade é que o relato convencional da história do capitalismo é absurdamente tendencioso, se não completamente mitológico.

Esse relato diz mais ou menos assim:

“O capitalismo é o herói salvador da civilização; nós temos a melhor teoria econômica já inventada, que nos resgatou da poeira da Idade Média para inaugurar a era da tecnologia e proporcionar ao homem um grau sem precedentes de bem-estar, liberdade e conforto, tornando a vida melhor, no geral, em todos os lugares. Depois, prossegue o relato, apareceu um propagandista radical chamado Karl Marx. Um idealista utópico, que surgiu na calada da noite para semear a discórdia no campo florescente da pureza capitalista e a quem não conseguimos mais erradicar completamente até hoje. Sua doutrina principal era a abolição da propriedade por meio do controle estatal dos meios de produção. Felizmente, Karl Marx foi derrotado pelo seu próprio sucesso: as nações que acolheram a sua ideologia se tornaram exemplos assustadores de fracasso para o resto do mundo, provando, de uma vez por todas, que o capitalismo é O Caminho”.

Sobre este relato confortável, deve recair imediatamente a suspeita de autopropaganda. Ideias como o socialismo, afinal de contas, não germinariam a menos que muita gente estivesse gravemente insatisfeita com as condições existentes. As massas só lutariam para abolir a propriedade privada se elas já não possuíssem propriedade alguma. E, se realmente examinarmos o desenvolvimento do capitalismo, veremos que foi exatamente isto o que ele causou, em geral, aos homens e às suas famílias: ele se tornou uma doença que condenou os homens, suas esposas e seus filhos ao papel de empregados em troca de tostões - e em troca da vida.

Felizmente, Marx não estava sozinho. Havia outra voz clamando no deserto social. Era a voz do papa Leão XIII. Como muitos outros, ele viu o mal óbvio do capitalismo, que é a alienação da propriedade, mas também viu que a cura proposta por Marx seria pior do que a doença.

Assim, em maio de 1891, ele lançou a grande encíclica Rerum Novarum, na qual condena firmemente tanto o capitalismo quanto o socialismo, corrigindo os erros que ambos tinham cometido a propósito da ideia de propriedade privada.

Primeiro, o papa notou as tristes condições causadas pelo capitalismodesenfreado:

"A contratação de mão de obra e a condução do comércio estão concentradas na mão de relativamente poucos; deste modo, um número pequeno de homens muito ricos pode impor à massas dos trabalhadores pobres um jugo pouco melhor que o da própria escravidão" (3).

A seguir, ele condenou a solução marxista:

"Para remediar tais erros, os socialistas, trabalhando sobre a inveja que o pobre tem do rico, esforçam-se para acabar com a propriedade privada e afirmam que as posses individuais devem tornar-se propriedade comum de todos. Mas as suas afirmações são tão claramente impotentes para acabar com a controvérsia que, com elas, o trabalhador seria dos primeiros a sofrer" (4).

Por fim, ele propôs a verdadeira solução, oposta tanto ao capitalismo quanto ao socialismo:

"A propriedade privada deve ser considerada sagrada e inviolável. A lei, portanto, deve favorecer a propriedade e adotar como política a de levar o maior número possível de pessoas a se tornarem proprietárias" (46).

O capitalismo tinha concentrado a riqueza em grau extremo. O socialismo procurava apenas completar o trabalho, transferindo a propriedade já concentrada para o governo. Leão XIII argumentou numa direção oposta a ambos: na direção da propriedade real para o trabalhador e para a sua família.

A constatação de que o socialismo representa uma concentração perigosa da propriedade fora das mãos das famílias é coisa clara nos dias de hoje: não preciso insistir neste ponto. No entanto, a constatação de que o capitalismo faz exatamente a mesma coisa é considerada praticamente uma “heresia moderna”, em especial nos círculos conservadores: portanto, esta tese exigirá argumentação. É esta argumentação que eu pretendo apresentar na próxima semana.

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