Nas cercanias do Palácio – Carta Capital – 13 Ago 13
Por Leandro Fortes
Documentos do
governo brasileiro indicam que os Estados Unidos ainda mantêm ao menos seis
bases de espionagem em Brasília
Desde a terça-feira 6 um grupo de assessores brasileiros
liderados pelo Ministério das Comunicações está em Washington para ouvir as
explicações do Departamento de Estado americano sobre as denúncias de
espionagem contra o País. E um lance para a plateia. Nas principais instâncias
de inteligência do governo federal e, portanto, no Palácio do Planalto, desde
sempre se sabe, ou se deveria saber, da movimentação de espiões dos Estados
Unidos no território nacional sob proteção da Embaixada em Brasília.
Manter agentes de inteligência em representações
diplomáticas não chega a ser uma novidade. Quase todos os países possuem alguma
estrutura desse gênero. O problema é que os norte-americanos vão além, operam
com uma liberdade incomum e extrapolam os limites da soberania. Segundo os
documentos vazados pelo ex-funcionário da CIA Edward Snowden, até 2002 Tio Sam
valia-se de 16 instalações em território nacional para atividades de
“inteligência”. CartaCapital apurou que ao menos parte dessa rede ainda
continua ativa. E pior: está instalada em Brasília, no coração do poder político
do País.
A série de documentos secretos e reservados do governo
federal obtidos pela revista, vários deles encaminhados a assessores diretos da
presidenta Dilma Rousseff, relata o funcionamento de ao menos seis endereços em
Brasília utilizados pela Embaixada dos EUA como centros de operação e análise
de inteligência. São quatro imóveis no Lago Sul, área tradicionalmente
residencial da cidade, um no Setor de Indústria e Abastecimento e outro no
Setor de Autarquias Sul, região central da capital, a pouco mais de 1
quilômetro do prédio dessa embaixada. Os imóveis, casas e salas comerciais,
cobrem com frequências de rádio toda a extensão do Plano Piloto de Brasília, a
partir de antenas de radiocomunicação e telefonia exclusivas autorizadas pela
Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que tem um representante na
missão enviada pelo governo aos Estados Unidos. A outorga para o uso
“limitado-privado” foi concedida à Embaixada dos EUA no fim do primeiro governo
de Fernando Henrique Cardoso, em 1997, e tem validade até 20 de julho de 2019.
Ao todo, abrange 841 licenças de frequências de rádio para uso exclusivo dos
americanos em solo brasileiro.
Na sala comercial número 209 do Bloco H da QI9, no Lago Sul,
funcionava a principal divisão de segurança das embaixadas e consulados dos
Estados Unidos, responsável pela movimentação de diversos equipamentos de
comunicação. Lá, o Regional Security Office (RSO) funcionou por oito anos até
se mudar, no fim do ano passado, para a sala 411 de um movimentado edifício de
lojas e escritórios no Setor de Autarquias Sul. No local, tanto os funcionários
da portaria como a vizinhança do corredor estranham a movimentação constante de
servidores da Embaixada, quase sempre no turno da manhã. Muitos costumam passar
a noite no escritório.
A Embaixada dos EUA
mantém ainda um conjugado de salas comerciais de números 311 e 312 no Conjunto
12-A do Setor de Mansões Dom Bosco, também no Lago Sul. Na sala 311, segundo os
relatórios encaminhados ao Palácio do Planalto, funciona o escritório da Drug
Enforcement Administration, a DEA, órgão do Departamento de Justiça dos Estados
Unidos encarregado da repressão e controle de drogas. Como se verá mais
adiante, a DEA tem uma longa história no Brasil. Nos anos FHC, financiava
atividades da Polícia Federal e, em troca, tinha carta branca para atuar em
território nacional, conforme denunciou uma série de reportagens de
CartaCapital entre 1999 e 2004.
Na sala 312 fica um contingente do Information Program
Center (IPC), responsável pela comunicação de rádio e telefonia da Embaixada
norte-americana, principalmente na área de inteligência. As duas salas são
fortemente gradeadas e permanentemente refrigeradas. Aparentemente, funciona
como uma estação de rádio que opera em diversas frequências, a partir das
licenças concedidas pela Anatel.
O maior imóvel alugado pela Embaixada americana é uma
chácara na QI 5 do Lago Sul. No terreno vigiado por câmeras e guaritas foram
construídos alojamentos para fuzileiros navais e é um dos endereços com licença
de funcionamento de radiofrequência da Anatel. Em outro terreno menor, ocupado
por uma casa no Conjunto 2 da QL16 do Lago Sul, os americanos montaram
aparentemente um bunker rodeado de câmeras de segurança e com uma guarita de
vidros espelhados. No galpão do SIA, em uma zona afastada do Plano Piloto, a
antiga movimentação de funcionários e furgões da Embaixada americana foi
interrompida no início do ano. O imóvel foi esvaziado e, atualmente, há apenas
uma placa de “aluga-se” na entrada.
Segundo documentos publicados pelo jornal O Globo, outra
unidade de espionagem funcionou em Brasília, até 2002, controlada pela Agência
Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA, em inglês), em conjunto com a
CIA. Era parte da rede de 16 bases das agências de inteligência dos EUA que
coletavam informações em todo o País, a partir de satélites de outros países.
Embora o Brasil não tenha satélites próprios (o único foi repassado à Embratel
na privatização de 1997), o governo mantém alugados oito desses. Os satélites
estão estacionados sobre a Linha do Equador e, por isso, colhem muitas e
importantes informações sobre a Amazônia, região de grande interesse
estratégico e alvo de cobiça internacional. Outros documentos, datados de 2010,
dão conta da possibilidade de os EUA terem grampeado escritórios da Embaixada
do Brasil em Washington e da missão brasileira nas Nações Unidas, em Nova York.
Outros papéis vazados à mídia nacional revelam que o então presidente Lula foi
monitorado durante a tentativa de fechar um acordo com o Irã em 2009.
CartaCapital entrou em contato com a Embaixada dos Estados
Unidos na sexta-feira 2 para saber qual a utilidade dos seis imóveis apontados
como bases de espionagem em relatórios internos do governo federal. Todas as
informações, inclusive os endereços das casas e salas comerciais, foram
encaminhadas à assessoria de comunicação da Embaixada via e-mail, mas nenhuma
resposta foi enviada até o fechamento desta edição.
As informações sobre o mega esquema de espionagem dos
Estados Unidos começaram a se tornar públicas a partir de 6 de junho, quando o
jornal britânico The Guardian iniciou a publicação de uma sequência de
reportagens do jornalista GlennGreenwald baseadas nos documentos vazados por
Snowden. Soube- se assim que a NSA não cuidava apenas da segurança interna, mas
estendia seus tentáculos a países aliados, inclusive o Brasil. A partir de
bases espalhadas planeta afora e de uma rede de satélites, os Estados Unidos
montaram um sistema monstruoso de monitoramento de e-mails e ligações
telefônicas com a cooperação de empresas de telecomunicações e de gigantes da
internet, entre eles o Google e o Facebook. Os espiões americanos desenvolveram
um programa chamado PRISM, dedicado ao monitoramento em tempo real da
circulação de informações na rede mundial de computadores, em tese para
prevenir ataques terroristas.
Snowden trabalhava para a CIA e para a NSA em cargos ligados
ao manejo e acompanhamento de dados em sistemas secretos de informação. Antes
de iniciar os primeiros vazamentos em Hong Kong e fugir para a Rússia, ocupava
o posto de analista de infraestrutura na Booz Allen & Hamilton, contratada
pela NSA supostamente para prestar serviços de consultoria estratégica. Sob
essa fachada, a Booz Allen conseguiu contratos com setores públicos de vários
países, entre eles o Brasil, durante o mandato de FHC. Aqui, a consultoria
participou oficialmente da formulação dos programas Brasil em Ação e Avança Brasil,
que nunca saíram do papel, além de ter auxiliado nas privatizações promovidas
pelos tucanos na década de 1990 e na reestruturação do sistema financeiro
nacional.
Ao longo dos oito anos da era fernandina, portanto, a
principal prestadora de serviço da CIA no esquema de espionagem mundial não só
foi contratada pelo governo brasileiro como teve acesso a dados privilegiados
das ações administrativas do País e a informações completas de toda a
movimentação financeira nacional. Isso incluía livre trânsito pelo Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Um dos projetos em
conjunto entre Brasília e a Bozz Allen, pago com dinheiro nacional, foi
batizado de Brasiliana e traçou os “Eixos Nacionais de Integração e
Desenvolvimento”.
Apesar dessas relações carnais, como diria o argentino
Carlos Menem, FHC veio a público, logo após os vazamentos, negar qualquer
conhecimento a respeito da espionagem dos EUA A respeito, o ex-presidente
construiu uma daquelas frases consideradas brilhantes por seus admiradores:
“Nunca soube de espionagem da CIA em meu governo, mesmo porque só poderia saber
se ela fosse feita com o conhecimento do próprio governo, o que não foi o
caso”. Em seguida, sugeriu à presidenta Dilma Rousseff tomar uma atitude. “Cabe
ao governo brasileiro, apurada a denúncia, protestar formalmente pela invasão
de soberania e impedir que a violação de direitos ocorra.”
FHC talvez tenha sofrido um lapso de memória. Ele mal
iniciava seu segundo mandato quando CartaCapital publicou reportagens sobre a influência
dos serviços de inteligência dos Estados Unidos na Polícia Federal.
Ex presidente Fernando Henrique Cardoso foto
Magdalena-Gutierrez
A DEA e a CIA financiavam atividades da PF: pagavam agentes,
davam treinamento, pagavam hotéis, aluguéis de carros e até de imóveis
utilizados pela força federal. Em troca, circulavam livremente pelo Brasil. Em
uma reportagem de maio de1999, Bob Fernandes, então redator-chefe desta
revista, menciona os imóveis utilizados pela CIA de Norte a Sul do País. Eram
15, número bem próximo dos 16 revelados pelos documentos vazados por Snowden.
No mesmo mês e ano, Fernandes registrou a seguinte declaração de James Derham,
chefe da missão diplomática dos EUA, a respeito do teor da atuação
norte-americana em território nacional. Derham não deixa margem para dúvidas:
“O dinheiro é nosso, as regras são nossas”. A partir do governo Lula, o acordo
deixou de funcionar, Tio Sam diminuiu a abrangência de suas atividades, mas,
como denunciou Snowden e como comprovam os documentos oficiais do governo
brasileiro, as atividades de espionagem não cessaram.
O envio de representantes do Brasil a Washington foi
decidido durante uma reunião em 27 de julho entre Dilma Rousseff, o ministro da
Justiça, José Eduardo Cardozo, e o chanceler Antonio Patriota. A ideia inicial
era convidar autoridades americanas para virem ao Brasil, mas Patriota
convenceu a presidenta de que o melhor era enviar um grupo à capital dos EUA.
Segundo o chanceler, uma missão brasileira provocará mais impacto na comunidade
internacional, principalmente entre os aliados europeus atingidos pela
bisbilhotagem do império. E pouco provável, no entanto, que a visita a Washington
renda mais do que uma explicação formal sobre o expediente denunciado por
Snowden.
Há um mês, em um telefonema para Dilma, o vice-presidente
dos Estados Unidos, Joe Biden, deu poucas e mal formuladas explicações sobre o
monitoramento e a espionagem de cidadãos e instituições brasileiras pela NSA.
Lamentou a repercussão negativa do caso e fez o convite para a missão de
Brasília visitar seu país.
Publicamente, o presidente Barack Obama argumentou tratar-se
apenas de um programa de defesa da segurança interna, sem riscos à privacidade
alheia. “Ninguém está ouvindo suas conversas”, declarou. Segundo o general
Keith Alexander, chefe da NSA, o programa PRISM tem evitado dezenas de ataques
terroristas aos EUA e criticou Snowden por danificar de modo “significante” e
“irreversível” a segurança da nação.
A crise pegou o Palácio do Planalto de surpresa, em parte
por culpa da estrutura herdada, primeiro por Lula, depois por Dilma, do Sistema
Brasileiro de Inteligência, o Sisbin. O órgão central desse sistema, a Agência
Brasileira de Inteligência, deveria cuidar de informar diretamente a
Presidência da República sobre a movimentação de espiões estrangeiros no País.
A Abin não tem, porém, acesso direto ao Planalto desde o governo FHC, quando
foi criado o Gabinete de Segurança Institucional, estrutura militarizada
comandada desde sua instalação, em 1999, por oficiais do Exército. O atual
chefe do GSI é o general José Elito, ex-comandante das tropas brasileiras no
Haiti.
A crise tem origem justamente na relação entre a Abin e o
GSI, órgão que se transformou numa barreira para as relações entre a agência e
a Presidência da República, e fez da agência uma instituição secundária, impedida
de cumprir sua missão legal, a de assessorar o Planalto. Mais do que um filtro
das informações produzidas pelos agentes secretos brasileiros, o GSI criou um
problema de interação da Abin com a sociedade. Uma das primeiras medidas do
general Elito ao assumir a função de ministro-chefe foi acabar com a área de
comunicação social da agência, seção prevista no estatuto interno do órgão. Na
prática, isso criou uma espécie de censura interna e impediu o atual
diretor-geral da agência, Wilson Trezza, de estabelecer qualquer tipo de
ligação com a mídia. Até notas oficiais são barradas. Por esse motivo, Trezza
não atendeu aos pedidos de entrevista de CartaCapital. Sugeriu que a demanda
fosse encaminhada ao GSI.
A revista enviou perguntas ao GSI. Obteve a seguinte resposta:
até a conclusão dos trabalhos da missão brasileira enviada a Washington, o
gabinete considera “não ser oportuna a realização da entrevista”.
A missão brasileira precede a visita de Dilma aos Estados
Unidos em outubro. Em setores ligados ao governo cresce a sensação de que os
americanos agem para fazer valer seus interesses, especialmente na ainda
indefinida licitação dos Caças. As Forças Armadas anunciaram poucos dias atrás
a intenção de aposentar os Mirage a partir do fim deste ano. A compra de novos
aviões de defesa foi adiada inúmeras vezes durante a administração de Lula,
apesar de um acordo prévio fechado com os franceses.
Os Caças F-18 são superiores às aeronaves concorrentes, mas
os EUA têm restrições para a transferência de tecnologia, item até agora
considerado fundamental pelo governo brasileiro no processo de compra. Não se sabe
se Dilma manterá as diretrizes do antecessor ou mudará os critérios de escolha.
Washington nutre esperanças de alterar a perspectiva de Brasília. Resta saber
se as recentes revelações da espionagem de Tio Sam vão atrapalhar o lobby
americano.
FONTE: Carta Capital
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