quarta-feira, 9 de julho de 2014

Mais médicos ou menos indecência

Os estágios no SUS terão início em 2021. Quantos corpos sucumbirão até lá, vítimas da ventura sempre prometida e nunca concretizada?
Não vale mais a pena discutir a vinda de médicos estrangeiros. Proposta falaciosa, destinada ao fracasso. O governo percebeu a indecência e descartou os médicos cubanos. Deu-se conta de que eles aqui atuariam em regime de escravidão, como bem demonstrou Flávia Marrero, da Folha.
Tampouco vale a pena discorrer sobre os médicos portugueses e espanhóis. Criados com padrão de vida inatingível para a maioria dos brasileiros, nunca se adaptariam aos rincões abandonados e carentes da nação. Teriam que praticar em condições desprovidas de dignidade e sem chance de propiciar vida honrada para si e seus familiares.
Ademais, dificilmente receberíamos profissionais competentes, prósperos em seus países. Sem um exame de competência, para cá viriam muitos médicos desqualificados, desconfio que até alguns insanos ou foragidos.
Modificando radicalmente o seu discurso, o governo fez novo anúncio: curso de medicina de oito anos, dois deles dedicados ao trabalho no SUS. Simpatizei inicialmente com a ideia, menos desvairada do que trazer médicos estrangeiros, mais justa com a sociedade, que custeia a formação dos médicos da nação.
Ressabiado com os recentes disparates oficiais, debrucei-me em reflexões e terminei desconsolado. Esse estágio coercitivo é compatível com a prerrogativa de liberdade, direito inegociável da existência humana? Será que estagiários inexperientes conseguirão atuar num sistema público devastado pelo descaso e pelos malfeitos e assumir a responsabilidade de resgatar seres para a vida?
Instrutores e professores qualificados aceitarão migrar com suas famílias para os grotões remotos do país, amparando os estagiários? É justo obrigar um médico a estudar 12 ou 13 anos (curso: oito anos, residência: quatro a cinco anos) para poder exercer sua profissão e dar suporte à sua vida e da sua família?
O programa começará em 2015 e os estagiários iniciarão sua prática no SUS em 2021. Quantos corpos desassistidos sucumbirão até lá, vítimas da ventura sempre prometida e nunca concretizada?
Além dessas imperfeições na nova proposta, incomodaram-me a completa falta de discussão com os seus protagonistas e o ardor incontido com que ela foi apresentada. Fez-se crer que toda a indecência na saúde deve-se à falta de médicos. Um embuste, já que a Organização Mundial de Saúde recomenda como padrão assistencial ideal 1 médico para cada 1.000 habitantes e no Brasil essa relação atual é de 1,76/1.000 habitantes.
A realidade é que a saúde da nação está subjugada a um sistema governamental insensível, que vetou em 2011 lei que destinava 10% do Orçamento da União a essa área --a Argentina aplica mais de 20% ao ano em saúde.
Esse é um dos motivos --não a falta de médicos-- pelos quais existem 1.200 pacientes aguardando internação para cirurgia no setor de Urologia do Hospital das Clínicas de São Paulo, cerca de 200 deles com câncer e 140 crianças. O mesmo motivo impede outros hospitais públicos de cumprirem a sua missão. Quando um paciente é operado de apendicite, essas instituições gastam cerca de R$ 3.900 e são ressarcidas pelo SUS com R$ 414,62!
Senhora presidente, mais um clamor, respeitoso. Assuma a determinação política de priorizar recursos para as áreas sociais. Atue na saúde com competência e sensatez, não com respostas transloucadas aos gritos indignados da nação. Para que os brasileiros possam vislumbrar o alvorecer com esperança.
E combata com arrojo o grupo de ímprobos e incompetentes instalados no teu entorno. Sem esquecer o arcebispo Desmond Tutu: "Se ficarmos neutros numa situação de injustiça, teremos escolhido o lado do opressor".
MIGUEL SROUGI, 66, pós-graduado em urologia pela Universidade de Harvard (Boston), é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP e presidente do conselho do Instituto Criança é Vida
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